Estamos, enquanto eu escrevo este artigo, no contexto da festividade judaica do Dia do Perdão (יום כיפור), o décimo dia do ano hebreu, durante o qual, seguindo as orientações do livro bíblico de Levítico, os judeus praticantes fazem um jejum com diversas restrições, além de orações durante grande parte do dia, tudo dedicado à reflexão, confissão das falhas e pedido de reconciliação com Deus.
Ontem, em uma postagem do Facebook (num grupo de estudo da língua hebraica) sobre o Dia do Perdão, tive a infelicidade de ler um comentário que dizia o seguinte (a escrita não é minha, é do autor): “Eu acho que nem que eles pedir perdao do inicio ate o final da sua existencia vai ser difícil carrega a rejeição ao messias..”. Este comentário, longe de representar uma opinião isolada, junta-se a um coro de milhões de cristãos em todo o mundo e no decorrer da história. Opiniões que apontam uma suposta cegueira e crueldade do povo judeu em rejeitar Jesus como sendo o Messias prometido, realidade que, do ponto de vista dessas pessoas, está bastante evidente pelos escritos judaicos (isto é, o Tanakh, o Antigo Testamento).
No entanto, para compreender as outras pessoas, é necessário mudar a perspectiva e tentar ver o que elas veem. Neste assunto em questão, a verdade é que não são muitos os cristãos que foram analisar as escrituras judaicas antes de ver o que o Novo Testamento projeta sobre o Antigo. Na verdade, os cristãos são estimulados a lerem primeiro o Novo, começando por um dos evangelhos. Ou seja: são encorajados a pularem o trabalho de investigação do Antigo e já começarem assumindo que Jesus cumpriu as profecias! Isso é o que acontece.
Frequentemente, evangelistas citam algum gesto de Jesus como cumprimento direto de alguma profecia do AT, usando termos como “para se cumprir o que fora dito pelo profeta”. Exemplos: Mt 2,17; 4,14; 12,17 e dezenas de outros no decorrer dos evangelhos, os quais tinham grande interesse em demonstrar que Jesus cumpriu profecias do AT. Estas profecias são apresentadas em listas em muitas bíblias, outros livros e páginas da internet, como forma de convencer as pessoas sem que precisem ler o Antigo Testamento. Essas listas me ajudaram a achar as passagens escolhidas com mais facilidade.
É verdade que o Antigo Testamento, como parte da Bíblia cristã, entra nas dezenas de leituras que jovens aspirantes a cargos nas igrejas fazem. No entanto, esta leitura não é feita com profundidade suficiente para captar o que será o assunto dos próximos parágrafos, isto é: estes textos do Antigo Testamento não eram sobre Jesus, e sim sobre outros temas, e isso claramente, ou seja, sem deixar lugar a qualquer dúvida e sem ser complicado de perceber! Não precisa conhecer os idiomas originais ou fazer estudos complicados de horas com livros pesados para verificar o que estes textos que aqui selecionamos estavam falando em seus contextos simples.
Como a proposta é abordar textos que claramente não são sobre Jesus, não estão neste artigo passagens que exigem muito mais atenção para explicar, como Isaías 52-53, Daniel 9 e outras, que podem ser consideradas em outros artigos.
1- Gn 3,15: a semente da mulher
O NT não cita claramente Gn 3,15 como profecia messiânica direta. No entanto, poucas passagens entraram para o imaginário cristão como indicações do Messias como esta, chamada de “o protoevangelho”. Isso acontece porque o terceiro capítulo de Gênesis aborda uma temática central para o Cristianismo: a “queda de Adão e Eva”, o “pecado original”. O versículo 15, que contém parte do anúncio do castigo da serpente, seria (para o cristão) uma indicação da resolução futura do problema do pecado pelo Messias. Portanto, desde o problema – e desde a criação do mundo – está pronta a solução: Jesus. Os seguintes textos do NT são considerados alusões a Gn 3,15: Gl 4,4, Ap 12, 9 e Rm 16, 20.
Tenho um artigo inteiro sobre este texto de Gênesis (clique aqui), mas resumo aqui as razões que mostram que o mesmo nunca foi o protoevangelho: é necessário ler um versículo antes (o 14), e perceber que se trata do castigo da serpente sendo anunciado por Deus. As três personagens da narrativa serão castigadas pelo erro cometido: na sequência de quem causa o tropeço do outro, a serpente, Eva e Adão. A serpente é apontada pelo texto como um animal selvagem (v.1), contado entre os demais animais e que deverá rastejar e comer pó (v.14). Além disso, no v.15 é dito que a descendência (zera’, semente¹, termo que significa todos os descendentes coletivamente) da mulher, que a partir da maldição passaria a ser inimiga da descendência da serpente, feriria a cabeça desta e (em segundo lugar) seria ferida pela descendência da serpente. Nem a serpente é o Satanás nem a “semente da mulher” é Jesus. O sentido básico e contextual é: “as criaturas descendentes da serpente serão inimigas das descendentes da mulher e cada linhagem ferirá a outra”. Se assumirmos que se trata claramente de Satanás e Jesus, devemos lembrar que o texto menciona que a serpente feriria o humano depois de ser ferida, o que não faz sentido em um contexto cristão. No imaginário cristão, Jesus apenas fere o Satanás. Além disso, é possível perceber que, no texto de Gn, não seria a serpente (supostamente o Diabo), e sim a descendência dela que seria ferida! Lembremos novamente: nem mesmo o NT afirma que este texto de Gn é claramente messiânico.
2- Gn 26,4: a descendência de Abraão
Observe o seguinte texto do Novo Testamento: “Ora, as promessas foram feitas a Abraão e à sua descendência. Não diz: E às descendências, como falando de muitas, mas como de uma só: E à tua descendência, que é Cristo” (Gl 3, 16). Paulo associa a Jesus, aqui, o termo “descendência” (o mesmo que já conhecemos a partir da análise de Gn 3) mencionado nas promessas feitas a Abraão em Gênesis. Existem diversos textos em que Deus faz promessas sobre a “descendência de Abraão”. Vejamos alguns deles:
A) Gn 12,7 – “E apareceu o Senhor a Abrão, e disse: À tua descendência darei esta terra (...)”. Observa-se que aqui Deus promete a terra pela qual Abraão estava passando no versículo anterior (6) à descendência do patriarca, ou seja, aos descendentes, o povo judeu.
B) Gn 13,16 – “E farei a tua descendência como o pó da terra; de maneira que se alguém puder contar o pó da terra, também a tua descendência será contada”. Em outra promessa, Deus anuncia que a descendência de Abraão seria imensa em número.
C) Gn 26,4 – “E multiplicarei a tua descendência como as estrelas dos céus, e darei à tua descendência todas estas terras; e por meio dela serão benditas todas as nações da terra”. Por último, são repetidas as duas promessas anteriores e acrescentada uma nova: por meio da descendência de Abraão, numerosa e dona das terras, todas as nações serão abençoadas.
As outras referências à descendência na história de Abraão são Gn 17,7 (onde Deus afirma que mediante a aliança da circuncisão seria o Deus da descendência futura de Abraão), 22,17-18 e 24, 7 (repetições dos textos já vistos). A descendência é, em todos os casos, um grande número de pessoas, o povo hebreu, que, segundo as promessas de Deus, possuiria a Terra Prometida, seria muito numeroso e constituiria um canal de bênçãos para todas as nações. Avaliar de que modo ocorre a bênção das nações por meio do povo hebreu está além do objetivo deste artigo, mas o fato é: as promessas feitas à descendência de Abraão dizem respeito ao povo hebreu, claramente. O termo semente/descendência, apesar de ser singular, denota uma entidade coletiva, o que acontece frequentemente na Bíblia. Não é verdade que o termo é singular porque se refere ao Messias, como Paulo afirma.
3- Ex 12,46 ou Sl 34,20: nenhum de seus ossos será quebrado
De acordo com o Evangelho de João, um evento relacionado à crucificação de Jesus ocorreu diretamente para se cumprir um texto do Tanakh: nenhum osso de Jesus foi quebrado, ao contrário do que foi feito aos ladrões executados ao lado dele: “(...) quebraram as pernas ao primeiro, e ao outro que como ele fora crucificado; Mas, vindo a Jesus, e vendo-o já morto, não lhe quebraram as pernas. (...) Porque isto aconteceu para que se cumprisse a Escritura, que diz: Nenhum dos seus ossos será quebrado” (Jo 19,32-36).
Este é um exemplo típico de alegação de cumprimento de profecia messiânica, ou seja, um texto do Antigo Testamento é lembrado como uma promessa, sinal ou indicação de alguma coisa relacionada a atos da vida de Jesus. Se você pegar uma Bíblia com referências, verá que Ex 12,46, Sl 34,20 ou ambos são citados como os textos do AT que traziam a escritura a ser cumprida. Verifiquemos estes textos:
A) Ex 12, 46 – “Numa casa se comerá [o cordeiro pascal]; não levarás daquela carne fora da casa, nem dela quebrareis osso”.
B) Sl 34, 19-20 – “Muitas são as aflições do justo, mas o Senhor o livra de todas. Ele lhe guarda todos os seus ossos; nem sequer um deles se quebra”.
O texto de Êxodo traz uma lei, referente ao cordeiro pascal. É verdade que, para o cristão, o cordeiro sacrificado pelos judeus na festa da Páscoa (quando havia o Templo) representa Jesus, que foi executado na época desta festividade. Porém, a passagem citada é um mandamento, uma lei, e não uma profecia! Não se trata de um sinal a ser cumprido, no sentido de realizado, e sim de uma simples ordem a ser obedecida. Já o texto do Salmo, como se pode observar, fala do justo de modo geral, do seu relacionamento com Deus. “Os justos clamam, e o Senhor os ouve, e os livra de todas as suas angústias”, diz o versículo 17, algumas palavras antes. O autor fala da proteção divina sobre as pessoas justas, ao ponto de Deus cuidar de cada osso delas. Mais uma vez, não há aqui intenção de fazer uma profecia sobre o Messias judeu.
4- Dt 18, 15-19: O Profeta
“...Suscitarei um profeta do meio de seus irmãos, como tu [Moisés], e porei as minhas palavras na sua boca, e ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar. E será que qualquer que não ouvir as minhas palavras, que ele falar em meu nome, eu o requererei dele” (Dt 18,17-19). Este texto parece apontar para um profeta bem específico, não é mesmo? E ainda mais quando observamos que este seria como Moisés (parece que essa característica dá mais contorno ao profeta: ele deve ser grande como Moisés) e atentamos para o tom de advertência das palavras “qualquer que não ouvir as minhas palavras... requererei dele”. Parece se tratar de algo sério e pontual. A associação a Jesus é imediata, e este texto de Deuteronômio é um dos mais usados pelo Novo Testamento, pelo menos no livro de Atos dos Apóstolos. Veja este exemplo:
“E envie ele a Jesus Cristo (...), o qual convém que o céu contenha até aos tempos da restauração de tudo, dos quais Deus falou pela boca de todos os seus santos profetas, desde o princípio. Porque Moisés disse aos pais: O Senhor vosso Deus levantará de entre vossos irmãos um profeta semelhante a mim; a ele ouvireis em tudo quanto vos disser. E acontecerá que toda a alma que não escutar esse profeta será exterminada dentre o povo” (Atos 3,22-23).
Atos 7,37 menciona novamente a promessa do profeta de Deuteronômio como alusão a Jesus. Nos próprios evangelhos, vemos pessoas enxergando em Jesus um profeta, em diversas passagens.
Já escrevi, anos atrás, sobre Dt 18 com mais atenção (clique aqui). No entanto, vou apresentar aqui um resumo: Dt 18, em sua leitura correta e contextual, fala sobre características dos profetas como mensageiros de Deus, e não sobre um profeta em particular. Não existe o numeral “um” nos versículos 15 e 17, apenas consta a palavra navi, profeta ou um profeta, onde um é artigo indefinido. Nos versículos do contexto, observamos: foi o próprio povo que pediu pra não ouvir diretamente a voz de Deus (v. 16), sendo que este respondeu positivamente ao pedido e, em decorrência disso, prometeu levantar profeta (v.17), por meio de quem falará ao povo. O sentido correto fica ainda mais claro quando vemos os versículos 20 a 22, nos quais são estabelecidas regras para profetas: o profeta que falar falsamente em nome de Deus deverá ser morto (v. 20) e é trazida uma prova para identificar profetas verdadeiros (v.22). Também pode-se fazer uma conexão com os versículos anteriores ao 15, nos quais lemos sobre proibições de práticas idolátricas, principalmente ser “prognosticador”, “agoureiro”, “feiticeiro”, “encantador”, “consultor dos mortos” e “adivinho” (vv. 9-14). É em seguida a estas proibições que se introduz o v. 15 e posteriores. Ou seja: o povo hebreu, em sua terra, não deve consultar ou realizar práticas das outras nações como forma de prever o futuro. O Senhor falará por meio de profeta, a ele o povo deverá ouvir. Trata-se, como é possível observar, da atuação do profeta, de diretrizes para identificar profetas verdadeiros e falsos, como forma de ouvir (no caso dos verdadeiros) a voz de Deus, em resposta, repito, ao pedido que o povo fez. Não vemos aqui a promessa de um profeta em particular. Os termos “como tu [Moisés]” se referem ao fato de Moisés ser um porta-voz de Deus ao povo, assim como os demais profetas que surgiram posteriormente.
5- Is 7,14: a virgem conceberá
A passagem de Is 7,14 é importantíssima para o cristianismo, pois é atribuída a ela uma das maiores profecias messiânicas, ou seja, o Messias deveria nascer de uma virgem, pelo entendimento cristão. Mateus 1,22-23 afirma sobre as circunstâncias do nascimento de Jesus: “Tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que foi dito da parte do Senhor, pelo profeta, que diz; Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho, e chamá-lo-ão pelo nome de Emanuel”.
Isaías 7 é um daqueles textos que um cristão mediano lê com emoção e fica (na mais otimista das hipóteses) triste ou (numa menos otimista) irritado pelo fato de que a maioria dos judeus não aceitaram Jesus. Apesar disso, surpreendentemente, não se trata de um dos textos difíceis, como Is 53, que exigem mais atenção para explicar a visão judaica. Não! No caso do texto da “virgem”, temos algo facilmente compreendido no contexto que, por ter sido lido de uma forma muito diferente, tornou-se muito famoso na interpretação errada.
Em primeiro lugar, uma consulta a versões melhores da Bíblia em português (TEB, Bíblia de Jerusalém, Tradução do Novo Mundo) mostrará que não ocorre a palavra virgem em Is 7,14. O que temos é “jovem” ou “donzela”. O termo hebraico é almá, que significa apenas “mulher jovem”. Mas essa não é a principal coisa que mostra o mau uso do texto, e sim a leitura contextualizada.
O sétimo capítulo de Isaías, pra quem se deu ao trabalho de ler atenciosamente, começa com uma história que se estende por diversos versículos, relatando uma ameaça de invasão de Jerusalém (capital do reino de Judá) por uma coligação de dois reinos: Síria e Israel (reino do norte, tendo como capital Samaria). O rei de Judá, Acaz, estava muito assustado com a iminente tomada da cidade (v.2). Como resposta à preocupação do rei, Isaías é enviado para animá-lo (v.4) e dizer que o combate dos inimigos contra Jerusalém não terá sucesso (v.7). O profeta convida o rei a pedir um sinal de que o que está falando acontecerá (v.11). Como Acaz não quis pedir o sinal, demonstrando, talvez, falta de confiança ou de interesse (v.12), Isaías afirma que o próprio Deus dará um sinal, e que sinal seria esse? Aí está! O versículo 14: a jovem grávida! A interpretação correta torna-se evidente dois versículos adiante: “na verdade, antes que este menino saiba rejeitar o mal e escolher o bem, a terra, de que te enfadas, será desamparada dos seus dois reis” (Is 7,16). Percebe-se que o menino (o Emanuel), sinal para o rei naquela circunstância, não teria atingido a idade de distinguir o bem do mal quando a terra dos reis inimigos, citados pelo nome no começo do capítulo, estaria desolada. Na linguagem bíblica, distinguir o bem e o mal é um marco de idade, como se pode observar em Dt 1,39: “(...) e vossos filhos, que hoje não conhecem nem o bem nem o mal, eles ali entrarão, e a eles a darei, e eles a possuirão”.
Também é muito importante perceber que os principais verbos do versículo 14 de Is 7 não estão no futuro, mas no presente (da época de Isaías, século 8 antes da era cristã): “Pois bem, o SENHOR mesmo vos dará um sinal: Eis que a jovem está grávida e dá à luz um filho e lhe dará o nome de Emanuel” (Is 7,14, TEB). De acordo com bons comentaristas judeus e cristãos (do mundo acadêmico), “a jovem” apontava para alguém bastante conhecida, muito provavelmente a própria mulher do rei Acaz, e o filho por nascer seria o herdeiro real, Ezequias, personagem importante, de quem foi dito “No Senhor Deus de Israel confiou, de maneira que depois dele não houve quem lhe fosse semelhante entre todos os reis de Judá, nem entre os que foram antes dele. Porque se chegou ao Senhor, não se apartou dele, e guardou os mandamentos que o Senhor tinha dado a Moisés” (2Rs 18, 5-6). Mas não é necessário identificar exatamente quem foi o Emanuel para perceber que Is 7 falava claramente sobre alguém que nasceria mais de setecentos anos antes de Jesus, filho de uma mulher jovem, sem a circunstância de ser virgem. Este menino seria um sinal para um rei preocupado, no contexto de uma iminente invasão militar.
Observe
como as mesmas palavras que ocorrem em Is 7,14 foram traduzidas em Gn
16,11, no contexto do filho de Abraão e Hagar: Ismael: "Disse-lhe também
o anjo do Senhor: Eis que concebeste, e darás à luz um filho, e chamarás
o seu nome Ismael; porquanto o Senhor ouviu a tua aflição". No
hebraico, aparecem os mesmos verbos, no mesmo tempo que em Is 7,14.
Hagar já estava grávida no momento do anúncio, assim como a jovem
mencionada em Isaías.
Gênesis 16:1
6- Jr 31, 15 – o choro pelos filhos que não mais existem
Apesar de que este texto não traz uma suposta profecia messiânica diretamente relacionada à identidade de Jesus, Jr 31,15 é citado no relato da infância de Jesus em Mt 2,18 como uma profecia cumprida em um contexto diretamente relacionado ao nascimento dele: a matança dos inocentes de Belém. O relato é muito conhecido: o rei Herodes mandou matar todas as crianças de Belém por saber que o rei dos judeus (o Messias) deveria nascer naquela cidade. O texto que cita o Antigo Testamento pode ser visto abaixo:
“Então Herodes (...) irritou-se muito e mandou matar todos os meninos que havia em Belém, e em todos os seus contornos, de dois anos para baixo (...). Então se cumpriu o que foi dito pelo profeta Jeremias, que diz: Em Ramá se ouviu uma voz, Lamentação, choro e grande pranto: Raquel chorando os seus filhos, E não quer ser consolada, porque já não existem.” (Mt 2,16-18).
O texto citado é Jeremias 31,15:
“Assim diz o Senhor: Uma voz se ouviu em Ramá, lamentação, choro amargo; Raquel chora seus filhos; não quer ser consolada quanto a seus filhos, porque já não existem. Assim diz o Senhor: Reprime a tua voz de choro, e as lágrimas de teus olhos; porque há galardão para o teu trabalho, diz o Senhor, pois eles voltarão da terra do inimigo” (Jr 31,15-16).
Pode-se observar que, no contexto de Jeremias, o choro de Raquel pelos seus filhos deveria chegar ao fim, pois haveria restituição: os filhos voltarão “da terra do inimigo”. É óbvio que não se trata do choro pelas crianças mortas de Belém na época do nascimento de Jesus, e sim do lamento pelo exílio na terra do inimigo. As palavras “já não existem” não significam que os “filhos de Raquel” morreram, e sim que foram levados ao exílio. Vale observar que toda essa passagem de Jeremias é alegórica, pois Raquel, mulher de Jacó, é uma personagem do livro de Gênesis, falecida mais de mil e setecentos anos antes do ano zero da era comum, e mais de mil anos antes de Jeremias. Trata-se do choro (poético, simbólico) de uma matriarca do povo hebreu por seus filhos levados ao exílio. Os versículos posteriores (18...) voltam-se a um personagem relacionado a Raquel: Efraim, neto dela. Efraim é, na Bíblia, uma forma poética de se referir a dez tribos de Israel, integrantes do chamado reino do Norte, com capital em Samaria. Veja este texto que fala sobre o exílio dos israelitas (do norte):
E sucedeu, no quarto ano do rei Ezequias (que era o sétimo ano de Oséias, filho de Elá, rei de Israel), que Salmaneser, rei da Assíria, subiu contra Samaria, e a cercou. E a tomaram ao fim de três anos (...). E o rei da Assíria transportou a Israel para a Assíria; e os fez levar a Hala e a Habor, junto ao rio de Gozã, e às cidades dos medos; (2 Rs 18,9-11).
7- Os 11,1: Do Egito chamei meu filho
Os primeiros capítulos de Mateus estão cheios de detalhes envolvendo o nascimento de Jesus que seriam cumprimentos de profecias messiânicas. Observe este versículo: “E esteve lá, até à morte de Herodes, para que se cumprisse o que foi dito da parte do Senhor pelo profeta, que diz: Do Egito chamei o meu Filho” (Mt 2,15). O texto dos profetas citado é o primeiro versículo de Oséias 11. Observe o contexto:
“Quando Israel era menino, eu o amei; e do Egito chamei a meu filho. Mas, como os chamavam, assim se iam da sua face; sacrificavam a baalins, e queimavam incenso às imagens de escultura. Todavia, eu ensinei a andar a Efraim; tomando-os pelos seus braços, mas não entenderam que eu os curava. Atraí-os com cordas humanas, com laços de amor, e fui para eles como os que tiram o jugo de sobre as suas queixadas, e lhes dei mantimento” (Os 11, 1-4)
Observa-se que o contexto trata da relação entre Deus e Israel, principalmente, mas não unicamente, a parte do norte (“Efraim”, ou seja, o reino do norte, com capital em Samaria). Existe um motivo para o escritor ter escolhido as frases que escolheu. A menção a “chamar o filho do Egito” é parte do contexto do amor a Israel. Não faz sentido escrever algo sobre um assunto e, de repente, uma pequena porção (o que chamariam de “parte b”) de um versículo ser arrancada e tomada como profecia, ou seja, caracterização do Messias judeu. É evidente que o “meu filho” que Oséias menciona é Israel. É bom lembrar que em diversas passagens bíblicas Israel é considerado filho de Deus. Por exemplo: “Então dirás a Faraó: Assim diz o Senhor: Israel é meu filho, meu primogênito” (Ex 4,22). É possível fazer uma conexão entre o texto de Êxodo e o de Oséias. Israel é o filho de Deus, chamado para fora do Egito. Com certeza você pode perceber por esse texto que não é comum, como já afirmamos, cristãos lerem o Antigo Testamento considerando honestamente o que ele diz por si só, em seu contexto. Não é feito um trabalho de pesquisa. Uma simples leitura de Os 11 em contexto mostra que quem foi chamado do Egito foi Israel, que, diga-se de passagem, é, no texto, um personagem que se comporta como rebelde e idólatra!
8- Sl 41,9: Até meu amigo de confiança me traiu
De acordo com o Evangelho de João, Jesus fez o seguinte discurso sobre sua iminente traição por um dos discípulos:
“Não falo de todos vós; eu bem sei os que tenho escolhido; mas para que se cumpra a Escritura: O que come o pão comigo, levantou contra mim o seu calcanhar. Desde agora vo-lo digo, antes que aconteça, para que, quando acontecer, acrediteis que eu sou (...). Tendo Jesus dito isto, turbou-se em espírito, e afirmou, dizendo: Na verdade, na verdade vos digo que um de vós me há de trair” (Jo 13,18-21).
Percebe-se o anúncio, aqui colocado na boca do próprio Jesus (como acontece em alguns outros casos) de que certo evento de sua vida aconteceria para cumprir algo do Antigo Testamento. O texto mencionado, como se pode perceber por meio das referências cruzadas, é o nono versículo do Salmo 41: “Até o meu próprio amigo íntimo, em quem eu tanto confiava, que comia do meu pão, levantou contra mim o seu calcanhar”. Se lermos o versículo apenas como forma de estudar o texto de João pensaremos mesmo que se trata de um tipo de profecia. Mas quem lê os Salmos no contexto, com respeito à integridade do livro, percebe que se trata de um tipo de poemas comum, sobretudo nos salmos, que envolve as queixas do escritor ou de seu povo diante de Deus. Na Bíblia TEB, esse tipo de salmo se chama “oração de pedido de socorro”. No caso do salmo 41, começa-se com uma exposição sobre a bem-aventurança do justo (que ajuda o pobre) e depois o salmista relata uma oração que fez, incluindo uma confissão de pecado, e expõe suas súplicas e queixas, concluindo com a resposta de Deus e um louvor a Ele. Observe o versículo 5: “Dizia eu: Senhor, tem piedade de mim; sara a minha alma, porque pequei contra ti”. O eu-lírico do salmo 41 se reconhece como alguém que pecou contra Deus. Portanto, contextualmente, o versículo que fala sobre traição não se refere a Jesus, nem era algo a se cumprir, e sim parte de um poema sobre aflição e consolo de um pecador junto a seu Deus.
9- Sl 35,19; 69,4: Odeiam-me sem motivo
Muitos salmos, como foi possível observar no caso do 41, apresentam queixas ou súplicas, ora do povo todo, ora do autor em particular (Davi ou outro). Os salmos que trazem súplicas pessoais do autor são muito utilizados pelo Novo Testamento como textos a serem cumpridos. Alguns deles, como o 69, acumulam várias passagens que parecem se referir a Jesus: v.4 (me odeiam sem causa), v.7 (tenho suportado afrontas), v.8 (oposição dos próprios irmãos), v.9 (zelo pela tua casa – usado no episódio de Jesus no Templo), v.21 (deram-me a beber vinagre) e outros. Para um leitor cristão, pode até causar estranheza que os judeus não entendam que se trata de um salmo sobre Jesus. Mas não nos desviemos do objetivo. Observe este texto de João:
“Se eu entre eles não fizesse tais obras, quais nenhum outro tem feito, não teriam pecado; mas agora, viram-nas e me odiaram a mim e a meu Pai. Mas é para que se cumpra a palavra que está escrita na sua lei: Odiaram-me sem causa” (Jo 15,24-25).
Em primeiro lugar, a “Lei” (Torá), em seu sentido mais clássico e frequente é referência ao Pentateuco, aos livros de Moisés, então a referência que Jesus cita está errada². O texto é dos Salmos; mas isso não é o principal: Se observamos os dois textos de Salmos em que o “odiar sem causa” aparece (35,7 e 69,4), veremos que não se trata de textos a serem cumpridos em Jesus, e sim típicas poesias/orações de súplica a Deus. Observe que:
A) O eu-lírico do Salmo 69, que parece bastante se identificar com Jesus, se assume como pecador: “Tu, ó Deus, bem conheces a minha estultice; e os meus pecados não te são encobertos”, diz o v.5, que é imediatamente seguinte à declaração “me odeiam sem causa”.
B) O eu-lírico de ambos os salmos deseja a retribuição (inclusive a morte) contra seus inimigos (ver 35,5-6 e 69,24; 28). Esses desejos cheios de angústia do justo perseguido (ambos os salmos assinalam a autoria de Davi) não se adequam aos ensinamentos de Jesus sobre como agir em relação a nossos inimigos:
“Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus” (Mateus 5,44).
10- Ele será chamado Nazareno
Para concluir esta pequena lista, vamos considerar mais uma alegação de cumprimento de profecias no começo do livro de Mateus:
“E chegou, e habitou numa cidade chamada Nazaré, para que se cumprisse o que fora dito pelos profetas: Ele será chamado Nazareno” (Mt 2,23).
Mais uma vez parece óbvio ao leitor que o Antigo Testamento obviamente profetizava detalhes nítidos da identidade de Jesus, neste caso, a cidade em que habitava e um título a ele associado. O termo “ele”, aqui presente, parece uma clara alusão ao Messias. Realmente parece que os judeus não têm qualquer razão para rejeitar Jesus (observe-se também que sempre usam termos e acusações que levam para o campo das emoções: rejeição, “não receberam”, esperavam um rei poderoso etc.). Mas o que não estão fazendo é ir conferir nas escrituras judaicas! Neste caso, pegue uma Bíblia (impressa ou digital) com referências, para achar o texto do Tanakh que cita o título “Nazareno”.
A lista mais completa de referências cruzadas para Mt 2,23 no Antigo Testamento indica os quatro versículos abaixo:
A) Is 11,1 – “Porque brotará um rebento do tronco de Jessé, e das suas raízes um renovo frutificará”. Neste caso, será necessário recorrer ao original hebraico. A palavra renovo, contida neste texto é, em hebraico, נצר (nêtser), associada, por quem produziu as referências marginais de Mateus, ao termo Nazaré. Apesar de serem palavras aparentadas no hebraico, não há neste texto a palavra Nazareno ou Nazaré.
B) Is 53,2 – “Porque foi subindo como renovo perante ele”. Ocorre aqui o mesmo que no capítulo 11 de Isaías. A palavra nêtser, renovo, mas nenhuma associação a Nazaré.
C) Je 23,5 – “porquanto o menino será nazireu de Deus desde o ventre; e ele começará a livrar a Israel da mão dos filisteus”. Este texto é parte do anúncio do nascimento de Sansão! Como é possível tirar disso algo a ser cumprido? Ainda assim, a passagem não traz a palavra “chamado”, muito menos os termos Nazaré ou Nazareno. Nazireu é, em hebraico, uma palavra totalmente diferente.
D) Zc 3,8 – “eu farei vir o meu servo, o Renovo”. Mais uma vez, a palavra nêtser é lembrada, porém não existe o texto dos profetas anunciado por Mateus!
Observe que os autores das referências cruzadas precisaram apontar textos totalmente sem conexão real com Mt 2,23, como tentativa de preservar a integridade da Bíblia. Mas a verdade é que não existe qualquer referência no Antigo Testamento à cidade de Nazaré nem ao termo Nazareno! É verdade, mais uma vez, que o termo nêtser (renovo) está linguisticamente aparentado ao nome da cidade de Nazaré (Natserat ou Natsêret) e também que esse termo tem conexões messiânicas em Isaías e Zacarias. O que não é verdade, no entanto, é que existe o texto citado por Mateus!
Conclusão
Esta pequena lista está longe de ser completa. O Novo Testamento está repleto de conexões insustentáveis com textos do Antigo. Aqui só apresentamos dez passagens para dar uma introdução à discussão para o leitor que não teve contato com o que afirmamos aqui.
A verdade é que não é comum que cristãos saibam do que abordamos aqui. Alguns sabem (no meio acadêmico, principalmente) e afirmam que os textos do Tanakh, embora não falassem contextualmente sobre Jesus, podem ser interpretados com liberalidade como alusões a ele. Em outras palavras, até o anúncio do nascimento de Sansão, os salmos em que Davi se admite pecador e uma lei sobre o cordeiro pascal podem ser citados como textos a se cumprirem, se entendermos que cumprir não significa a realização de uma profecia-tipificação messiânica, e sim o efeito de uma alusão, o “sentido completo” dos textos. No entanto, não podemos usar as escrituras dessa maneira! Textos que são leis precisam ser lidos como tal, e assim por diante. Curiosamente, uma das frases mais usadas por jovens cristãos que estudam um pouco a Bíblia é “texto sem contexto é pretexto para heresias”. Ora, o que o Novo Testamento está fazendo o tempo todo é justamente pegar os textos sem contexto!
Eu posso, apesar de não crer assim, ter algum respeito pelo argumento de que os textos do AT faziam alguma alusão messiânica, mas a verdade é que a maioria dos cristãos sequer foram apresentados à realidade de que esses textos do Tanakh não eram contextualmente sobre Jesus, o que causa muita intolerância e concepções erradas sobre os judeus, como vemos o tempo todo em comentários nas redes sociais, por exemplo. Não é verdade que é óbvio que Jesus é o Messias pelas escrituras judaicas! O que aconteceu foi que os autores cristãos distorceram as escrituras judaicas para parecer que tinham razão! Nenhum judeu pode ser responsabilizado por ler no contexto correto suas escrituras e por não aceitar claras adulterações das mesmas.
O livro mais importante da história da humanidade (e o mais injustiçado) jamais foi sobre um homem ou sobre o drama de uma humanidade autoflagelante com medo de pecado de Adão. É um belíssimo salmo sobre a educação da humanidade com vistas a um futuro de paz e harmonia. Agostinho, se não tivesse tido contato com o Antigo (em tradução grega!) e o Novo distorcendo-o, poderia ter sido um israelita. Ele, juntamente com muitos intelectuais que, tragicamente, não tiveram a oportunidade de ler direito o livro que deveriam ter mais estudado. Ou seja, não leram o Antigo pelo Antigo, o Antigo no contexto do Antigo, no entorno original.
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Pode causar estranheza que o termo "semente" ou "esperma" seja usado
quando se está falando de uma mulher. Alguns utilizam textos judaicos
notando essa estranheza como argumentos (como se todos os textos
judaicos -- os quais são frequentemente contraditórios entre si e não
reconhecem Jesus-- fossem de aceitação obrigatória). Mas é claro por Gn
24,60 que o termo zera' também se aplica pela Bíblia a mulheres.
² Este não é o único caso de citação errada. Mt 27,9 cita Jeremias como autor da suposta profecia sobre 30 moedas de prata. No entanto, o texto está em Zacarias.
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